Coração Aberto: Minha trajetória, um testemunho da palavra do TEAC e percepções sobre o ofício de ser artista

     Me chamo Coração de Sabedoria e sou artista! Em 2019, decidi abandonar pela segunda vez a faculdade para viver meu sonho de ser artista. Primeiramente, abandonei Economia em 2015, pois queria estudar música. Mas apesar dessa decisão de largar Economia, desisti antes mesmo de tentar música. Então prestei o vestibular para História. Passei em 2016 para o curso. Em 2019, quando estava perto de formar, decidi que me formaria logo de uma vez para seguir minha vida como artista, mas em 2020, com a pandemia, perdi toda a perspectiva de vida. Então, em 2021, decidi realmente abandonar o curso de História e me profissionalizar enquanto artista. Escolhi um curso na Escola de Música, baseado em um único critério: o curso de menor duração para que eu entrasse lá e percebesse que não é impossível para mim. Durante 1 década, entre falhas e desistências antes de tentar, jamais passei em alguma prova na Escola de Música. Tentei pra violão erudito, violão popular e canto popular. Falhei em todas as tentativas. Então, fui cursar Iluminação de Palco. Foi a melhor coisa que fiz. 

    Em outubro de 2021, comecei a trabalhar como artista de rua, fazendo performances musicais. A primeira coisa que te faz ser um profissional em qualquer área de atuação é a quantidade de tempo que você se dedica a exercer este ofício. Até 2021, eu estudava muito música para alguém que tinha a música como hobby. Sempre tirava entre uma e duas horas do meu dia para ficar com meu violão e cantar. Mas nenhum profissional de nenhuma área se forma com duas horas de estudo diário. Entendi isso quando comecei a trabalhar na rua, e percebi minha evolução em 1 mês, tendo em vista que transformei um cenário em que eu passava duas horas com o violão, para outro cenário em que eu passava 12 horas com o violão. A diferença no final de uma semana é gritante. Enquanto que a pessoa que passa duas horas diárias se dedicando, no final de uma semana, ela trabalhou 14 horas naquele ofício, a pessoa que passou doze horas diárias, no final de uma semana, trabalhou 84 horas. Foi quando finalmente entendi a preciosidade do tempo e da dedicação. Uma pessoa que se dedica a outros ofícios, dificilmente vai alçar grandes voos na arte (claro, sempre em comparação ao que essa pessoa tem de talento e pode entregar, nunca em comparação aos outros), simplesmente porque uma pessoa que se dedica a outros ofícios tem menos tempo para se dedicar à arte. E a arte exige que você entregue tudo de si.

    Em novembro de 2021, a Escola de Música reabriu com a volta às atividades presenciais após a pandemia. Pela graça divina, a escola estava em temporada de recital. O curso de iluminação de palco que iniciei e que, até então, estava sendo online, passou a ser presencial, com operações na mesa de iluminação. Ou seja, o trabalho prático. Além disso, o trabalho de iluminação era operado por escalas: a escola de música tem recitais de segunda a sexta durante a temporada de recitais, e os estudantes de iluminação revezam entre si durante os eventos. Para mim, este período foi uma oportunidade de ouro! Eu já ia para a rua trabalhar de qualquer maneira. Então, de forma embrionária, comecei a desenvolver o trabalho que exerço até hoje. Como havia eventos na Escola de Música todos os dias, eu usava a flexibilidade do meu trabalho para ir duas ou três vezes para o curso, operar a luz dos eventos. Então eu me deslocava até o curso trabalhando, e voltava para casa trabalhando. 

    Enquanto artista, eu ainda não compreendia o valor da minha arte. Então, eu comprava doces e fazia kits, os quais eu cobrava R$2,00, R$5,00, R$7,00 e R$10,00. Porém isso me deixava insatisfeito: eu não queria ser um vendedor de doces. Eu queria ser artista! Um dos artifícios que usei para vender meus doces era fazendo uma performance musical. Eu só vendia o doce para quem estivesse disposto a ouvir minha música. E não é qualquer música que a pessoa quisesse ouvir. Eram as minhas composições. Certo dia, intrigado porquê eu estava sempre bastante disponível para iluminar, o professor de iluminação Aldo Bellingrodt me perguntou de que eu trabalhava, e eu expliquei para ele como eu trabalhava. Então ele me perguntou: "Coração, se você já trabalha com performances, por que você não vai aprender teatro?". No auge da minha ignorância, eu não sabia que eu fazia performances, tampouco, sequer imaginava que existia o mundo mágico do teatro.

    Ainda em 2021, escrevi um poema que tinha dois versos que diziam: "Vivo e morro pela minha arte/ o resto faz parte". Esse poema havia se tornado um mantra para mim, toda vez que eu sentia medo de trabalhar na rua, e sempre que eu duvidava de mim mesmo. Foi quando, no dia 31 de dezembro de 2021, às 15h, eu fui fazer um show e sofri um atentado contra a minha vida. Em uma tentativa de homicídio, fui esfaqueado nas costas. Nesse dia, esses versos soaram como um mantra na minha cabeça, e foi aí que eu tive certeza de duas coisas: 1) Meu nome de batismo era Daran, que em hebraico significa Coração de Sabedoria. Nesse dia, o Daran morreu, e deu lugar ao Coração de Sabedoria; 2) O caminho da arte era o meu caminho, e que não tinha mais volta. Eu precisava seguir em frente.

    Pois então, em 2022, comecei a seguir em frente e me joguei de cabeça nas artes. Me inscrevi em todas as oficinas gratuitas que eu pude, e mergulhei tanto na arte de rua, quanto no teatro, circo, dança, música, iluminação, fiz até mesmo um curso de lutheria. Fui ateu dos 12 anos até os 25. Meses antes do atentado, senti a presença de Deus pela primeira vez. Em 2022, enquanto artista de rua, fiz inúmeros trabalhos espirituais, e foi quando me dei conta que o artista é um ser que viaja pelas dimensões físicas, mentais e espirituais. Defino a espiritualidade como o campo dos sentidos, a virtualidade como o campo mental e a materialidade como o campo físico. 

    Este ano de 2024, completam 2 anos que iniciei a minha formação teatral. E em novembro, completam dois anos que iniciei o TEAC. Aprendi quase tudo que sei com o TEAC Hugianas ministrados pelos professores Marcus Mota e Flávio Café. Caí de paraquedas, mas era o lugar que eu precisava para alavancar minha jornada. 

    Me lembro quando comecei a fazer o TEAC, em todo lugar artístico que eu ia, os professores e oficineiros me diziam "menos, faz menor". Quando conheci o Café, foi o primeiro lugar que alguém me falou "Eu quero mais! Eu quero tudo o que você pode me entregar". Eu já trabalhava com arte de rua há poucos meses, mas, ao mesmo tempo que me considerava um artista, eu não me considerava um profissional. Era um aspirante, sonhador, que ia para a rua porque não tinha espaço em lugar algum. Até que um dia eu perguntei para o Café como eu fazia para me tornar um grande artista como ele, e ele me respondeu "Coração, você já é um grande artista, você tem tantas coisas a oferecer. Agora, você só precisa treinar para polir seu trabalho." Dito e feito, com o treino constante, percebi uma grande evolução tanto no meu trabalho nas ruas, quanto fora delas. A cada semestre que voltava, sempre percebi uma grande revolução no meu corpo cotidiano e, sobretudo, no meu corpo em cena.

    Com o Café aprendi que se você não dá 100% durante o ensaio, até pode ser que você consiga chegar a 100% de si na apresentação, devido à adrenalina e à troca com o público. Mas pode ser que você não consiga dar tudo de si na apresentação e nada saia como o planejado. Porém, se você dá 100% de si em todos os ensaios, na hora de apresentar, com a adrenalina e a troca com o público, você é capaz de ultrapassar a barreira dos 100% e ir além das suas capacidades. E quando você volta a ensaiar, você sabe que tem muito mais para evoluir, como uma espiral que não para o movimento. O pote que você tinha transbordou e agora você precisa de um pote novo para guardar todo aquele conteúdo. Porém o trabalho continua o mesmo: você deve encher aquele pote, e para isso, melhor do que pingar é jorrar.

    Além disso, com o Café, percebi que eu era artista desde minha infância. Muito além, eu percebi que já era artista corporal desde a mais tenra idade, mas demorei 27 anos para ter esta clareza no pensamento. Pratiquei Karatê dos 7 aos 17 anos de idade, mas só com 27, percebi que não precisava abandonar esta base corporal que construí ao longo de 1 (sofrível) década. Muito pelo contrário, aprendi que a consciência corporal desses movimentos, só tem a me beneficiar enquanto artista performático. Depois que comecei a praticar teatro com o Café, voltei a me exercitar fisicamente, emagreci 20 quilos, ganhei confiança para encarar o público na rua. Além disso, descobri que eu amo o Karatê, eu só não gostava de apanhar do mestre que me ensinou. Passei a ler os livros de Karatê e conectar com os aprendizados do TEAC. Desenvolvi uma técnica pessoal de treinar Karatê. Além disso, foi neste momento, em que comecei a ler os livros, que entendi o que o mestre Gichin Funakoshi dizia sobre o Karatê: antes de tudo, o Karatê é um fortalecimento corporal, mental e espiritual. Descobrir o lado espiritual do Karatê me libertou de muitas lembranças dolorosas.

    Em relação ao meu trabalho como artista, a partir do TEAC comecei a apresentar peças de teatro, e me senti preparado para apresentar como palhaço, além de desenvolver um número de malabarismo circense manipulando um bastão, estudo que comecei no segundo semestre da matéria. Foi a partir do TEAC que tive a confiança que eu precisava para fazer a prova de Canto Popular da Escola de Música, algo que almejei por 1 década e finalmente consegui passar. Tive a oportunidade de ocupar espaços como o CCBB, estar em um grupo que fez a abertura da exposição do Hélio Oiticica, e que abriu para a Bateria da Estação Primeira de Mangueira. Além de estar em outro grupo, ocupando o Museu Nacional, fechando uma peça da ATA, agrupação teatral que o Café faz parte. E olha, que o Café nem foi o responsável por nos convidar. Até então, para mim, um artista de rua anônimo, ocupar esses espaços, era impensável, mas graças a esse espaço de profissionalização, consegui chegar.

    Depois que comecei a fazer o TEAC, meu trabalho na rua também mudou. Saí de um cenário em que eu não me entendia bem como artista, ou o produto que eu oferecia, e passei a compreender como é meu produto artístico e como eu devo fazer a maior parte da minha renda. Hoje eu o chamo meu número de Serviço de Intervenções Performáticas Personalizadas. Ou seja, eu intervenho na vida das pessoas, paro o que ela está fazendo, para apresentar uma performance em que a interação com o público é o que dá prosseguimento à performance. No final eu passo o chapéu e sigo para intervir na vida de outras pessoas. Após o TEAC, saí de um cenário em que eu precisava usar doces e outros produtos para fazer minha arte, além de trabalhar 12 horas por dia sem contar com a minha formação, para um cenário em que eu trabalho entre 3 a 5 horas por dia, e consigo continuar minha formação artística, ou seja, polir o meu produto. Antes, minha renda diária depois de 12 horas era entre R$80,00 a R$150,00 (nos melhores dias). Após o TEAC, minha renda, após 5 horas gira em torno de R$150,00 (nos dias ruins) a R$300,00. Claro que este valor oscila, com as condições climáticas e com o dia do mês, mas de maneira geral, hoje em dia minha hora vale mais.

    Me formar no Huguianas não quer dizer que não busquei outras técnicas de teatro para me apropriar. Por isso, eu gostaria de compartilhar algumas reflexões que tive, quando conheci o ator e diretor Lupe Leal, que tem uma pesquisa incrível sobre a criação cênica a partir do olhar. Percebi diversas situações as quais eu nunca me dei conta. 

    Por exemplo, meu olhar em cena era completamente inconsciente. A partir do momento que tive contato com essa pesquisa, foi como se eu tivesse aberto os olhos e acordado para uma nova dimensão da cena. Além disso, se o olho também é recheado de musculaturas, por que não as exercitamos? Outro ponto importante é: olhar é fazer contato. Quando se desvia o olhar do público, por medo de encará-lo, o público perde contato com a gente. Dessa maneira, nós perdemos no jogo do artista: entreter o público. Se o público não tem contato com o artista, este não se entretém. 

    Para além disso, o olhar conduz a nossa atenção. Um experimento que fiz na Escola de Música, quando preparei a cena de uma música que cantei, ao invés de fazer uma partitura corporal de uma cena, fiz uma partitura da atenção, o que me deixou livre para improvisar, experimentar e criar na hora, e ao mesmo tempo me deu uma base a qual me apoiar. 

    Semestre passado, quando conheci esta técnica, passei a aquecer o olho e a voz simultaneamente, uma vez que as musculaturas da voz e do olhar estão intimamente conectadas, por estarem na mesma região do corpo. Eis que semana passada durante os exercícios de aquecimento, pela primeira vez decidi aquecer meu olhar e minha voz enquanto eu aqueço o corpo sensivelmente. Ou seja, integrar a voz e o olhar ao corpo. 

    Diferentemente do que o conhecimento científico prega, que é separar, compartimentar, para poder se especializar, percebo que o grande valor da arte está no movimento contrário: integrar. A comunidade científica do século XXI parece ter transformado em dogma, uma verdade universal, os paradigmas positivistas, materialistas e racionalistas do século XIX. Veja bem, a razão é sim uma ferramenta importantíssima para nós seres humanos, mas existem muitas outras ferramentas igualmente eficientes e importantes que nos trazem consciência e percepção do mundo ao nosso redor. Neste paradigma positivista, apenas a razão importa. Crescemos nas escolas sem compreender que também somos animais. "Somos animais RACIONAIS", o que nos diferencia de todos os outros seres ao nosso redor. 

    Este movimento racionalista ocupa bastante espaço no discurso desde nossa mais tenra formação, o que constitui numa estrutura mental em que acreditamos que somos desconexos: Mente e Corpo. A mente não faz parte do corpo. Não! Ela COMANDA o corpo. Seja racional! Nesta lógica, o espírito e o campo espiritual são completamente desconsiderados enquanto instâncias da existência. Se não há uma explicação lógica, então o que há é uma negação veemente. 

    Por este motivo, para a minha jornada, entendo que o valor da arte está, justamente, em reintegrar essa conexão corpo, mente e espírito. Na verdade, Deus não é 3. Ele é um só. E isso é uma grande alegoria para dizer que nós, seres humanos, somos somente um ser, que pode ser compreendido de três maneiras diferentes. Corpo, mente e espírito, para mim, são áreas de compreensão da existência. Planos. Dimensões. Não existe arte que não esteja na matéria física (Corpo), que não tenha alguma informação virtual que possa ser codificada e decodificada (mente), e que não nos cause sentimento nenhum (espírito).

    Ao fazer os exercícios de sensibilidade artística integrando grandes e pequenos grupos musculares, percebi uma conexão muito mais poderosa com o tempo presente. De repente tive acesso à um nível de consciência corporal que até então nunca pude experimentar. Consequentemente, ao sair do treinamento e ir pra rua trabalhar, fui capaz de transmitir uma verdade cênica e fazer contatos ainda mais verdadeiros com o público. Dessa maneira, vou me apropriando e acreditando ainda mais nas técnicas que estamos aprendendo, polindo meu trabalho e apresentando um número ainda melhor para meu público. Apesar de achar extremamente importante o momento de compartimentar os conhecimentos para poder aprimorar as técnicas, é importante ter um espaço de treino onde há um incentivo para que se integrem as áreas.

    Por fim, gostaria de deixar meu profundo agradecimento aos professores Marcus Mota e Flávio Café por me deixarem ser sua cobaia! Acabei falando muito do Café e pouco do Marcus, mas o Marcus é um gênio e em outro momento compartilho os muitos aprendizados que tive com ele. Apesar de falar pouco durante as aulas, seus comentários são sempre precisos e explodem a mente a cada vez que abre a boca para falar. 

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