Textos para uso em sala de aula
RUBRICAS
I
É noite, todos dormem finalmente.
Lá fora começa a cair uma chuva forte, contínua.
Finalmente.
As árvores se agitam, o vento empurra tudo para baixo.
Fechar os olhos, sentir o mundo girar.
A boca seca, a sede na pele, um calor imenso tomando conta da sala.
As cortinas imóveis, o chão duro para o corpo quente e vazio.
Fechar os olhos, fechar o corpo, fechar a ideia de algo além desse momento.
É noite, todos dormem, a chuva move a terra em fúria.
Um corpo permanece no chão.
Ninguém vai vir.
Nenhuma canção.
Água, muita água.
Suor
Chuva
Sono
Sono
Sono
II [Sant]
Há muito tempo eu te observo
há muito tempo conheço esse olhar.
Sou demais pra você:
uma perturbação,
uma pergunta sem resposta.
E eu então me sinto cada vez mais vestida,
mais cheia de quase toques e outras vontades.
Você nunca vai me possuir, meu bem, nunca!
E eu vou ficar girando em tua frente,
quase,
ao alcance de um braço,
perto,
a mão esticada, todos os dedos seus.
É uma adoração gostosa,
mas que eu afasto e desejo.
Não querer é querer também?
Olhar e só isso.
Gemer por mim.
clamar por mim,
até chegar a ser uma angústia.
Há muito tempo eu sei que você me venera,
que eu sou muito pra essa sua escassez.
Então vem e sugue,
essa boca sua de ontem,
de uma vez que você deixou de ser feliz.
Não é assim que os fracos vivem?
Uma deusa pode tudo!
Uma deusa pode!
Eu e ninguém mais.
III
Eu estou muita preocupada com tudo,
não tenho tempo mais nada.
Esqueci meu chaveiro em casa,
esqueci onde moro,
esqueci pra onde vou,
esqueci de avisar você sobre mim.
Mas nada importa pois estou muito ocupada,
hoje eu tenho mil coisas pra fazer
e não posso parar pra conversar contigo,
e não posso deixar de fazer planos,
e aquelas coisas malucas que você faz me atrapalham,
essa sua necessidade imensa de querer lembrar das viagens,
das noites em festas e das comidinhas, e das pessoas,
e dos sorrisos das pessoas, de ouvir as pessoas,
e de ouvir você, e estar com você,
e eu ali, no meio de tudo isso,
eu ali querendo ir embora,
e por que eu não fui,
e por ainda estou aqui.
Nem você está aqui,
nem minhas chaves,
nem minha casa,
nem meu carro,
e eu tenho tanta coisa pra fazer,
tanto lugar pra ir ainda hoje,
e nada importa mais pois estou ocupada,
estupidamente ocupada,
preocupada com tudo,
mil coisas pra fazer,
e os meus planos,
as minhas chaves,
o meu rosto que não ri mais,
meu rosto desocupado de pessoas,
e comidinhas, e música ruim e alta,
muita música ruim estourando meus ouvidos.
Eu não quero mais ouvir nada,
eu não quero mais ir pra lugar nenhum,
eu preciso fazer tantas coisas hoje,
ainda hoje,
hoje é um dia,
um dia,
é hoje,
por favor,
hoje,
apenas hoje e mais nada.
IV
Há um pouco de mim em tudo que faço,
uma silenciosa alegria, um selvagem desespero,
pequenas coisas que mostro e escondo ao mesmo tempo.
Pareço estar sempre em agulha e linha num tecido espesso,
pesado, duro de penetrar,
a costurar uma calça sem uma perna,
uma camisa com milhares de botões,
uma colcha infinita em suas tramas de retalhos de peles e partes de órgãos,
coxas de cães, maremotos, taças de vinho, sebos de livros,
e cuspes, cusparadas e fios de cabelos queimados,
e estrelas azuis e frias e chãos cheios de buracos,
e aves, muitas aves - como eu amo as aves! - as suas penas.
Ah eu queria as penas de uma ave,
eu queria voar e cair do céu, um céu esponjoso e fedorento,
uma queda sem deus e sem medo,
eu nua,
imensamente nua,
meus braços abertos esganando tudo em volta,
abrindo as carcaças, comendo o interior de todas criaturas,
enquanto em caiu, eternamente,
de braços abertos
até o último estrondo
um som interminável
e findo de tudo que existe.
V
Tem algo de muito errado no mundo
e todos sabem disso.
Há cada vez mais comida, mais gente nas filas dos restaurantes,
cada vez mais gente sentada em frente do seu prato.
O garçom vem e não sorri.
O cardápio não muda faz anos.
Essa mesa, essa cadeira que machuca minhas costas,
essa mesa e essa cadeira, e esse prato diante de mim,
e esse garçom, e o outro, e todos os outros,
e as bandejas vindo com mais comidas,
e eu sem fome tenho de cortar a carne e engolir a carne,
e voltar todos os dias para essa mesa, e esse prato,
e comer e comer e comer.
Tem algo de muito errado no mundo,
todo mundo sabe, todo mundo.
Quando eu acabar essa refeição,
quando eu matar essa falta de fome,
quando eu terminar de cortar essa carne
e a outra carne, e a próxima e a carne que virá,
e vai haver mais carne, a carne exposta, quentinha na bandeja,
trazida por um garçom , e por outro garçom, eles não param,
quando isso acabar, quando o serviço for feito,
e as bocas fecharem, e não houver mais carne, e gente que traga a carne,
e gente que coma a carne,
que corte a carne, e misture a carne com o molho,
o molho vermelho,
e misture a carne, o molho vermelho e o arroz branquinho, muito branco,
como é branco esse arroz!
Então depois de tudo isso,
com a barriga repleta,
uma dor,
uma dor terrível,
e essa dor,
as pessoas precisam falar dela,
então depois de tudo isso,
depois mesmo,
eu já nem sei mais, dói muito,
hoje vai ser difícil dormir,
há algo muito estranho no mundo,
mas não é pra agora,
o mais importante é que ninguém vai conseguir dormir,
ninguém,
ninguém!
Professor Titular / Full Professor
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